domingo, 6 de maio de 2007

A revolução da memória no jornalismo

Uma postagem aos jornalistas que não levam muita fé nesta revolução. Uma postagem um tanto massiva, longa, técnica, porém que trata de um assunto importante. Ou talvez um assunto que será importante em alguns anos.

Antes de começar a postagem, pergunto: você lembra quais foram as promessas do prefeito de sua cidade nas últimas eleições?

Outra: Lula se emocionou ao ser diplomado presidente, e disse chorando que aquele era o primeiro diploma em sua vida. Isso é verdade? Voltaremos a tratar estas questões no final da postagem.

Memória: uma das características do jornalismo digital

Quem já estudou sobre jornalismo digital deve conhecer as características deste meio que o fazem ser superior, em algumas áreas, aos meios de comunicação tradicionais. Há vários estudos sobre estas características no meio acadêmico, e muitos deles listam algumas características como a hipertextualidade, a interatividade, a convergência de mídias etc.

Alguns autores apontam a memória no meio digital como uma característica muito importante, pois oferece possibilidades únicas, como espaço de armazenagem praticamente infinito e facilidade no acesso a essas informações armazenadas. Este é um exemplo interessante de memória: um site com grande parte das edições da "memorável" revista O Cruzeiro; porém é apenas um exemplo de memória do meio impresso utilizando-se o suporte digital.

A verdadeira revolução no jornalismo está em outro tipo de memória: a do armazenamento das informações estruturadas em bancos de dados. Por exemplo: uma notícia de um portal armazenada de forma estruturada, separados o título, o resumo, as palavras-chaves (tags) etc.

Porquê?

Num conceito muito simplificado, o banco de dados é uma estrutura digital que armazena dados de forma tabulada, e cada novo registro é identificado (como se fosse um endereço). Imagine assim: um conjunto de tabelas, onde cada linha é uma notícia.

Ex.1: Cada linha é uma notícia, com um identificador (ID).

Existem softwares que fazem operações básicas nestas tabelas, sendo que quatro são principais: inclusão, exclusão, modificação e seleção de dados (ex.: numa tabela do Word, você pode inserir, apagar, modificar e ler dados). A possibilidade de "revolução" está principalmente na forma criativa de usar a operação de seleção destes dados (leia-se "saber cruzar as informações"). Os meios tradicionais não oferecem esta possibilidade.

Assim, é possível associar automaticamente a notícia atual com todas as milhares de notícias inseridas anteriormente, e então construir narrativas contextualizadas de forma nunca vista antes.

Exemplos, por favor!

Um exemplo simples é o site da Folha Online, que no final de cada matéria oferece o recurso chamado "Leia mais", onde são listados automaticamente os links das últimas notícias relacionadas ao tema em questão. Já na BBC Brasil são oferecidas listas de links específicos sobre cada personagem que participa da matéria.

Nenhum jornalista criou estes links: eles foram gerados automaticamente, por um software capaz de cruzar dados em um banco de dados.

Isso é revolução?

Não, é apenas uma evolução muito significativa; porém há possibilidades de se revolucionar utilizando a memória baseada em bancos de dados; mas para isso é preciso abusar mais da criatividade.

O uso criativo da operação de seleção no banco da dados possibilitaria criar redes (ou caminhos) de leituras relacionadas, satisfazendo a necessidade da contextualização plena da notícia; necessidade esta que o leitor gostaria de satisfazer.

A teoria é sempre bonita... mas e na prática?

Ok, vamos listar algumas possibilidades (entre inúmeras).

Você ainda lembra daquelas perguntas que fiz no início da postagem? Pois bem, várias vezes li reportagens de jornais que listam promessas de políticos não realizadas após três anos de governo. Na última vez que li, a reportagem marcava com um "V" cada proposta realizada, e com um "X" as não realizadas.

Se o brasileiro não lembra em qual deputado votou nas eleições passadas, lembraria de todas as promessas do prefeito?

Neste caso, ficamos dependentes da boa vontade dos jornalistas para realizarem reportagens sobre o assunto. Ficamos dependentes da capacidade do jornalista pesquisar as promessas, analisar a realidade e comparar estas informações. Porquê devemos depender disso? Talvez porque não tenhamos em casa grandes armários repletos de arquivos com a história política da cidade, do estado e do país; e se tivéssemos, não teríamos tempo para pesquisar.

Pois bem: sites que estruturam suas notícias em banco de dados poderiam muito bem fazer este trabalho todo, e a qualquer momento, basta realizar rápidas pesquisas automatizadas em seu banco de dados recheado de dados. Podemos relacionar a notícia sobre um protesto pela construção de uma ponte com a notícia de três anos atrás, quando o prefeito prometeu construí-la.

E se, numa destas operações da Polícia Federal contra a corrupção, como a Hurricane ou a Navalha, aparecer o nome de algum político que já tinha participado de algum escândalo há 15 anos atrás? Lembraríamos de sua história, do fato político em que ele se envolveu no passado? Lembraríamos dos atuais políticos que também se envolveram naquele fato antigo? Uma pesquisa automatizada no banco de dados poderia relacionar os nomes com os fatos, com as notícias armazenadas há anos.

Cada notícia poderia render uma rede de informações relacionadas, rede esta que infelizmente não é criada nos sistemas de notícias atuais. A criatividade está justamente na forma como apresentar estas redes, e não apenas apresentar uma lista de notícias que possuem o mesmo tema.

Mas afinal, o que o primeiro diploma do Lula tem a ver com tudo isso?

É apenas um exemplo. Na época, nenhum jornalista teve a boa vontade de procurar em seus arquivos se Lula já possuía outro diploma. Dependentes deles, ficamos sem saber que Lula já possuía diploma do Senai como Torneiro Mecânico, e claro, de Deputado Federal por São Paulo.

Conclua esta postagem-tese gigante, por favor

O importante desta postagem é saber que os bancos de dados "recheados" com anos de informações podem modificar o comportamento do leitor frente às notícias. O leitor passivo passa a ser também um autor ativo, pois pode criar suas redes de leituras, formando notícias muito mais contextualizadas e, até mesmo, abstrair novas informações (não publicadas) com suas associações. Afinal, essa é uma das técnicas que os jornalistas utilizam para obter novas informações: associar informações já existentes e assim abstrair conclusões lógicas.


UPDATE
Iuri - o futurólogo
Podem anotar: num futuro mais distante, além das fusões e compras de websites e empresas, haverá grandes negociações de bancos de dados entre empresas - sejam compras, fusões, joint venture, ou até mesmo "aluguéis" de bancos de dados. Imagine um site especializado em música começar a publicar notícias sobre teatro. Uma ótima estratégia seria pagar para ter acesso ao banco de dados do maior site especializado em teatro no país. "Bancos de dados especializados", como são as revistas.